terça-feira, 24 de junho de 2014

Capítulo III - A Viagem

Esperou a prima no mesmo sítio onde, há momentos lhe tinha ligado. Os minutos passavam dolorosamente, à medida que os seus próprios pensamentos o levavam a arrepender-se da decisão que havia tomado. Os cigarros escapavam-lhe das mãos para a boca freneticamente, como se a nicotina lhe pudesse dar um novo ar à mente, mas esta encontrava-se imutável. Não queria voltar à casa, mas não tinha força o suficiente para voltar atrás na sua palavra, sabia que mais tarde ou mais cedo tinha de lá voltar, não podia esquivar-se ao inevitável.

Três minutos e alguns cigarros depois, um carro estacionou à sua frente e, perante a inércia do primo, a condutora baixou a janela.

“Estás à espera que saia do carro para te pôr a bagagem na mala?” Lucas sentia a ironia inundar-lhe os ouvidos, à medida que a prima baixava os óculos e revelava um olhar fastidioso. “Então…?” A prima, para além de aborrecida, mostrou-se impaciente.

“Desculpe-me, por momentos não a reconheci.” Apressou-se a arrumar a bagagem e entrou no carro.

Como habitual, Lucas não se preocupou em fazer “small talk”. Sim, a prima estava a fazer-lhe um favor mas, isso não o compelia a encher o silêncio com perguntas até porque, ambos sabiam, que ele não estava minimamente interessado em saber pormenores enfadonhos sobre a vida insípida dela. Importou-se apenas em saber se podia fumar dentro do carro e, de bom grado, cedeu alguns cigarros para a prima o acompanhar.

A viagem era longa, mas Lucas deliciava-se enquanto denotava as grandes e pequenas diferenças na paisagem à medida que invadiam o interior do país. Os grandes campos de milho eram substituídos por girassóis e os campos e montanhas verdejantes por olivais amplos e planos de solo castanho, bairros e casas modernas eram substituídos por vivendas caiadas de branco ou de pedra, algumas remanescentes de tempos antigos de nobreza.

Os cigarros ajudavam a diminuir a inquietação total em que se encontrava, não sabia o que esperar daquela casa, ou das pessoas que a governavam. A verdade é que, apesar de toda a infância o petrificar, a sua mente tinha sido gentil em bloquear maior parte das pérfidas recordações que possuía, e tinha um medo ingovernável de estas se revelarem.  Se, com tantas falhas na memória, a casa e tudo o que ela representava lhe dava pesadelos, nem queria imaginar o que aconteceria á sua sanidade mental se algum dia viesse a descobrir tudo o que ficou ocultado nos recantos mais sombrios da sua memória!

A prima observava-o, denotava-lhe o nervosismo desastroso, as pernas irrequietas, o fumar compulsivo, a inquietação, a respiração ofegante como se lhe roubassem o ar. Por fim, decidiu quebrar o gelo.

“Diz-me… Estas assim nervoso pela viagem ou por me ver?” Gracejou.

“Nenhuma das duas prima.”

“Por alguma razão tem de ser…” Desviou o olhar da estrada por segundos para tentar decifrar a expressão do primo, sem sucesso porém.

“Não se apoquente com os meus assuntos” Repostou, de maneira fria.

A prima anuiu silenciosamente, mas Lucas já se havia arrependido de proferir aquelas palavras.

“Desculpe, não queria ser mal educado, o que eu queria dizer era...”

“Não faz mal Lucas” Interrompeu “a culpa foi minha”.

A prima tomou uma expressão familiar para Lucas, uma expressão tão maternal que se julgou criança de novo. As semelhanças entre a prima e a sua mãe deixavam-no mesmerizado. Queria tanto ser criança outra vez.

A prima voltou a tentar manter uma conversa com o seu passageiro inabalável, não era mulher de aceitar silêncios desconfortáveis.

“Pouca bagagem” Constatou “Não fazes intenção de viver lá?” Lucas soltou um sorriso à medida que acendia um cigarro, perante tal pergunta.

 “Não faço intenções de passar lá mais que uma noite”.

“Porquê?”

“Aquela casa…” Soltou uma gargalhada “dá-me pesadelos”.

O olhar da prima desvia-se da estrada, o seu primo tinha, sem dúvida, uma aparência aliciante. Tez morena contrastada com olhos verdes cansados e olheiras profundas, os cabelos eram negros como a noite. Era alto, as costas largas e as mãos grandes e cuidadas, aliás, tinha ar de quem tomava conta de si e, os contornos da camisa revelavam precisamente isso.

Pressentiu o primo à espera de uma resposta, levando-a a desviar rapidamente o olhar de volta à estrada.

“Como?” Perguntou embaraçada.

“Perguntei se acha ser assunto de mais que um dia.”

“Vou ser sincera contigo. Se encontrares alguma coisa que seja naquela casa, considerava-o um milagre!” Não conseguiu conter uma gargalhada estridente.

“Prima” Forçou um sorriso, não estava a achar grande piada ao comentário “Os caseiros não saberão certamente onde estão os papeis que procuro?”

“Os…” Voltou a soltar uma gargalhada histérica “Mas que caseiros, caro primo?”

“Não sei… Os caseiros… Os Silva?” A prima ria-se descontroladamente perante a pergunta.

“Já ninguém mora naquela casa desde que o teu pai de lá saiu. Vais estar completamente sozinho lá”.

Ficou perplexo. A prima ria-se continuamente, enquanto as palavras se transformavam em cinza na sua boca. O tic tac do relógio de cuco, os passos que ecoavam pela casa, o quarto trancado, os gritos… A casa voltou a assombrar-lhe os pensamentos.


sábado, 8 de fevereiro de 2014

Capítulo II - A Decisão

Sentia-se um corpo inerte à deriva no infinito, sujeito às partidas cruéis do destino. Não que acreditasse no “destino”, julgava o próprio conceito da palavra ridículo, como Homem que era gostava de ter o poder nas suas mãos, ou pelo menos pensar que assim o era. No entanto, naquele momento sentia a força do seu fado ligado, por sangue, ao filho da puta do velho…. Uma piada cruel.

A carta de nada lhe tinha servido de consolação, muito pelo contrário, tinha o deixado num estado impróprio seu. Ao fim, do que lhe pareceu, cinco minutos, bateram-lhe à porta do quarto. Acordou.

Laivos de sol roubavam a escuridão. A carta do velho? Estava intacta, mas não escondida, no monte onde a tinha deixado. Tudo tinha sido um sonho, ou pesadelo. Já nem se lembrava do que tinha lido na carta mas não interessava, qualquer palavra lida seria apenas a manifestação do seu, tão criativo, inconsciente. Levou as mãos à cabeça, esperando encontrar alguma lucidez, na porcaria de confusão que a sua vida se tinha tornado. Fez as malas rapidamente, determinado a por um fim à tortura que a casa lhe causava e terminar, por fim, com esse capítulo da sua vida, vestiu-se e fez check-out do hotel. Tirou um cigarro do bolso e acendeu-o, compulsivamente, à medida que marcava o número da prima no telemóvel, que atendeu prontamente.

“Preciso que me dê boleia.”

“Não tens dinheiro para um táxi agora, queres ver?” A prima respondeu-lhe com ironia.

“Não pode dar boleia ao seu primo?”

“Boleia para onde? Não me digas…!”

“Sim, boleia para casa. A casa.” Repostou impacientemente. “Estou à espera em frente ao Plaza. Pode passar aqui daqui a cinco minutos?”

“Mas… Tu queres boleia, agora?! Neste preciso momento?!” Perguntou perplexa.

“Claro!”

“Há pessoas que trabalham, caro primo!!” – Replicou violentamente.

“6 minutos?” Gracejou.

“Amanhã!”

“Tem de ser hoje!”

“Porquê? Vais-te acobardar?” Riu-se, o que o deixou a ferver de irritação.

“Um simples não basta! Eu arranjo-me, não se preocupe.” Preparou-se para desligar a chamada.

“Lucas espera! Tem calma… Estou aí em 5 minutos.” Suspirou. “Posso só perguntar, o que te levou a mudares de decisão tão rapidamente?”

“Só quero ver-me livre deste assunto o mais rápido possível, nada mais.”

“Sim, claro!” Voltou a ser irónica. “ Como se os teus secretários ou assistentes ou lá o que seja, não pudessem tratar do assunto?!”

“Nunca ouviu dizer?”

“O quê?”

“Se queres uma coisa bem feita, fá-la tu mesmo.”

“Sim, sim… não vou na tua treta.”

sábado, 21 de setembro de 2013

Capítulo II - A Tentação

Estendeu-se na cama com o cigarro por entre os lábios, colocou o braço por trás da cabeça e, de soslaio, esgueirou o testamento do pai. Estava até tentado a lê-lo, depois da conversa com Maurício. O envelope, escondido por entre revistas e recados sem importância, palpitava, roubava-lhe a atenção. Inalou o fumo e sentiu o tabaco agravar o desejo de ler a carta que lhe era dirigida.

Virou-se, subitamente, de costas para o envelope, como se o facto de não o ver lhe diminui-se de alguma maneira a vontade de ler a carta, o que resultou no completo oposto. Sentia o velho libertar-se por entre páginas e folhas e dominar a sala. O cheiro do pai invadiu-lhe a memória, parecia até senti-lo pairar pelos cantos do quarto, aquele cheiro que a chuva deixa depois de cair na terra levemente. Sentia-o em todo o lado, a presença era como que omnipotente e despia-o de qualquer réstia de controlo!


Avidamente, percorreu o pequeno espaço que o separava do objecto de desejo. Parou, inesperadamente, quando o corpo lhe começou a fraquejar, invadindo-o calafrios e espasmos, a reacção natural em tudo relacionado com o pai, rejeitava-o completamente. Era compreensível que, uma pequena parte de si, tinha receio do que iria encontrar por entre as palavras do velho, mas como quase sempre, a curiosidade sobrepôs o medo, levando-o a arrancar desajeitada e exasperadamente do envelope a carta, e consumir, sofregamente, as palavras que o encaravam.

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Capítulo II - A conversa

Muito para seu desagrado, o amigo advogado não albergava boas notícias. Informou-lhe de que pouco havia a fazer e que se ele queria, efectivamente, vender a propriedade o velho desejo do recente falecido acabaria por se realizar.

“Como assim?”

“No testamento, o teu pai” Lucas quase parou de respirar ao ouvi-lo, não gostava que o associassem ao velho, mesmo que este fosse seu pai “Exprimiu, mais que uma vez, um forte desejo que fosses à propriedade em questão” Informou-lhe Maurício.

“Ai sim?” Uma irritação aguda exprimiu-se num cerrar compulsivo dos dentes e pelo ritmo formado no soalho em resposta à inquietação das pernas. Estava farto, farto que a casa lhe invadisse os pensamentos todos os dias da sua vida e que, por uma razão que nem ele próprio compreendia, se tivesse escapulido para a realidade e o assombra-se, agora, ainda mais.

“Não te percebo Lucas… Mandas-me uns papeis e pedes-me para lhes encontrar algo de errado, quando tu mesmo ainda nem os leste!”

“Porque havia? Não tenho qualquer interesse em alguma coisa que aquele velho podre me deixe, seja uma merda de umas palavras pobremente dispostas em frases com desculpas ou ameaças, ou a porcaria da casa que sempre detestei! Não quero ter nada a ver com aquelas pessoas, casa, nada! Quero que me tires isto das mãos!”

“Pois…” Suspirou. Sentia compaixão por Lucas, sabia todos os seus maiores medos e todas as terríveis recordações de infância, mas estava de mãos atadas “Lamento querido amigo, mas é me impossível tratar da venda do imóvel sem os devidos documentos.”

“Propões que os tire da minha cartola mágica? Eu nem sei que documentos são esses!”

“Eu envio-te uma lista com tudo o que preciso para tratar do assunto, mas não te posso fazer o favor de lá ir.”

“Nem to pedia.” Resignou-se ao seu destino e abandonou o assunto. Fez um pouco de conversa de conveniência, perguntou ao advogado sobre a família, a vida, o trabalho, ou o excesso deste, e desligou.

Apercebeu-se que tinha ainda na mão, embora apagado, um cigarro que, tal como a sua paciência, se tinha consumido por inteiro. Toda a burocracia da situação aborrecia-o. Pouco percebia do assunto no entanto, não possuía qualquer desejo de aprofundar o conhecimento em assuntos como venda de propriedades, ou análises das palavras de defuntos, não quando podia pagar alguém para o fazer. Dinheiro não lhe era, propriamente, escasso. Livrou-se da réstia que tinha na mão e iniciou a arte num outro cigarro. Ponderou se poderia pagar a alguém para ir procurar aquilo que precisava para se livrar da casa, ponderou se alguém se atreveria a ir àquela casa sequer. Sim, sentia-se ligeiramente cobarde ao evitar com todas as suas forças e posses monetárias ter que passar uns dias naquele edifício, mas o medo ultrapassava-lhe qualquer outro sentimento, e era o único que lhe afectava todo o corpo e lhe ocupava toda a mente.

quinta-feira, 25 de julho de 2013

Capítulo II - A chamada

Acordou, em sobressalto, do que lhe pareceu um sono breve, confirmado pelo persistente e incessante ronco do homem com o qual partilhava a parede do quarto. O telemóvel tocava repetidamente. Tentou ignorá-lo, durante a eternidade de tempo que permaneceu no escuro, tendo apenas por companhia os barulhos do vizinho, uma companhia solitária e desagradável portanto. Mas, o toque, propositadamente irritante, definido para se obrigar a si próprio a atender chamadas invés de as rejeitar em toda a sua natureza anti-social, tornou-se insuportável demais.

"É bom que isto seja urgente!! Duendes e potes de ouro no fim de arco-íris esperam-me..." A ironia foi respondida com o mais frio dos silêncios. "Estou sim...?" Insistiu. Por fim, uma voz rouca, baixa e tremida fez-se ouvir. Reconheceu-a imediatamente.

"Desculpa... Des…" As palavras eram interrompidas por lágrima irrepressíveis.

Sentiu o mundo fechar sobre si mesmo, engoli-lo de uma forma tão completa que sentia todo o corpo comprimir-se devido a uma força oculta. Esmagava-o, afogava-o de uma maneira tal que não sentia o calor da superfície - a escuridão era total. Não conseguia respirar, não tinha ar e, entre convulsões incontroláveis, desabotoou a camisa que o sufocava. O temor tomou conta de si, petrificou-o, não conseguia obrigar-se sequer a desligar o telemóvel. 

“Filho… Desculpa!” A voz do pai parecia-lhe fraca. “Ela veio ter comigo! A culpa é dela!!! Mas, não penses que te podes esconder de mim!” Aos poucos, o tom ameaçador que tanto o caracterizava, tomava conta do pai. “Vou-te sempre encontrar! Sempre!!!”

Os olhos, involuntariamente, fecharam-se, todos os ruídos cessaram, deixou até de sentir a roupa na pele. Isolou-se no vazio, consumido pelo terror.

“Lucas…?” Voltou à realidade. A voz era diferente, não a do seu pai. 

“Maurício?” Uma enorme confusão fez-se evidente na sua mente. A voz que ainda há pouco dava vida a todos os seus maiores medos, revelava-se nada mais que uma ilusão, por muito realista que fosse. Tentou acalmar o coração, que pulsava incontrolavelmente, e respirou fundo.

“Estás bem?” Maurício parecia preocupado. Apesar de estar mais calmo, Lucas, não conseguia deixar de ofegar, o que, certamente, foi percebido pelo astuto advogado.

“Sim, não te preocupes comigo.” Olhou para o despertador na mesa-de-cabeceira, passavam poucos minutos das nove horas da manhã. Recorreu ao vício para o acalmar, apesar de nunca ter apreciado fumar logo pela manhã. “Agora,” Deu uma passa no cigarro e libertou o fumo violentamente “diz-me que tens boas notícias!”

quarta-feira, 3 de julho de 2013

Capítulo II - Os papeis

Tentou controlar um impulso persistente de desligar o telemóvel enquanto ouvia os gritos incessantes do outro lado da linha.

“Prima, ouça-me!” Sempre tratou a prima por você, um hábito antiquado adquirido ainda em criança por imposição do pai. O castigo por não o fazer seria demasiado terrível.

“Não vou ouvir coisa nenhuma Lucas! Não admito que te recuses a lá voltar, nem mesmo por uma única noite!” Os berros persistiam e a dor de cabeça, resultante das bebidas a mais da noite anterior, agravava-se.

“Pois admita! Não tenho qualquer intenção de voltar aquela casa!!” Retorquiu.

“Valha-me a Santa, rapaz! Que raio tens tu contra aquele sítio?!” A verdade é que nem ele sabia ao certo. Aquela casa dava-lhe a sensação de morte iminente, a sensação que nada de bom aconteceria enquanto permanecesse nela! Talvez o que aconteceu com o seu pai tenha contribuído para a sensação de desconforto total apenas ao pensar em ter de ir lá passar uma noite. A ausência de resposta à pergunta levou a um silêncio que prevaleceu uns segundos longos. A prima, que havia retomado a gritaria de ainda à pouco, foi interrompida.

“Eu vou pedir ao meu advogado para rever os papéis.”

“Por muitas revisões que ele lhes faça não vai mudar nada. Os papeis são claro!”

“Eu trato do assunto, não se massacre mais! Tenha um bom dia prima.” E desligou o telemóvel, sucumbindo, finalmente, ao impulso latente e antes que ela pudesse ripostar a sua decisão.

“Chegamos ao Plaza, senhor” Informou-lhe o taxista com um certo desdém. Pagou-lhe e saiu do carro. A carteira adquiriu uma estranha leveza, o taxista tinha-lhe cobrado dinheiro a mais.

Abriu a porta do quarto e, logo, reparou que a quantidade de mensagens e recados que o esperavam, pacientemente, na cómoda era nada mais que ridícula. Inspirou profundamente esperando que o ar lhe mudasse o espírito. Pegou nas mensagens e leu-as frivolamente, não havia assuntos importantes ou urgentes, por isso tudo o resto esperaria. Refastelou-se no sofá e decidiu-se a ligar ao advogado.

Marcou o número no telemóvel lentamente, como se os dedos lhe pesassem ou as teclas se tivessem tornado demasiado pequenas para as manusear com precisão. Por fim, levou o telemóvel ao ouvido e esperou. Tocou… Tocou… Tocou…

“Maurício, liga-me quando receberes esta mensagem. Vou mandar-te a cópia de uns papeis por fax, precisos que os vejas. Encontra-lhes alguma falha!”.

A prima, mais velha uns anos e com quem a relação era pouca, tinha-lhe enviado o testamento do velho, do seu pai. Segundo tal documento a casa era sua…

O silêncio, que pensava obter ao evitar continuar no telemóvel com a prima histérica, revelou-se falso, conseguia ouvir, claramente, o ressonar do vizinho do lado através da parede do quarto. Não conseguiu impedir que uma raiva nascesse violentamente no seu âmago. Para que raio andava a pagar quantias absurdas por um quarto de hotel, se nem podia ter o sossego por que tanto ansiava?!

“Merda para isto!!!!!”

Tentou, em vão, acordar o vizinho, ou fazê-lo parar com aquele barulho estridente, ao bater repetidamente na parede que os separava. Sabia que não era a ausência de paz que lhe fomentava a cólera, mas com grado os direccionava para o vizinho, que continuava a ressonar que nem um belo de um porco, na gerência do hotel, nos construtores, em tudo! Desistiu, por fim, quando as mãos lhe estavam já vermelhas, de modo a nem as sentir.

Encostou-se à parede do quarto e acabou por adormecer embalado pelas vibrações da parede em ressonância ao roncar incansável do homem hospedado no quarto a seguir ao seu.

segunda-feira, 1 de julho de 2013

Capítulo I - A mulher

A verdade é que, por muito que proibisse a entrada de Eve no seu pensamento, ela acabava sempre por quebrar a regra. Ela quebrava todas as regras. Como era possível ainda exercer um tão forte efeito sobre ele?

Tirou um cigarro do bolso direito do casaco e, mal saiu do prédio acendeu-o, tentado apagar o sabor que o nome dela lhe tinha provocado. Parou, brevemente, na entrada do prédio enquanto levava o cigarro à boca, infundindo o fumo até que lhe dissolvesse os pensamentos.

“Ainda te quero demais…” E deixou-se pensar nela. Mergulhou nas funduras daquela mulher impetuosa que o fez perder tantas vezes a razão, o amor por si próprio e toda a lógica. Deixou-se pensar em percorrer-lhe o corpo, como havia feito há tanto tempo por tantas vezes; em sentir o olhar, tão profundo que lhe lia a alma, pairar sobre si; em ouvir-lhe o riso alto e possante. Eve, era uma mulher como tantas outras, não era uma beleza estonteante com olhos azuis, cabelo loiro e pernas longas! Não, era baixa e algo curvosa. Mas, não havia quem lhe igualasse olhar… Como o cativava! Fazia-o perder a cabeça e todos os princípios que pensava ter. Ansiava por ela… Por ouvir a sua voz, por sentir o seu toque, por ama-la e tê-la de novo nos seus braços!

Expirou prolongadamente o fumo e levou o cigarro à boca mais uma vez. Não fumava até a conhecer, foi como que seduzido a começar por ela. Adorava vê-la fumar, dava-lhe um ar de quem era dona de si. Chegava a ficar horas a vê-la consumir cigarro após cigarro.

Nunca pensou que ela o pudesse trair, muito menos de uma forma tão profunda, preferia até que ela fizesse sexo outro homem! Porque tinha ela falado com o seu pai? Porque tinha ela a necessidade de resolver assuntos para além da sua compreensão? Porquê?

Jamais amaria alguém da maneira que a tinha amado, mas não possuía qualquer desejo de deixar tal acontecer. Amou-a, amava-a ainda, talvez sempre a fosse amar, mas nunca estaria com ela.
Deixou o fumo do cigarro escapar-lhe dos pulmões violenta e sucintamente, e com ele proibiu de novo a presença dela na sua mente. Fez sinal a um táxi que se aproximava do fundo da rua e entrou.

“Para o Plaza.”

“Sim senhor.”

Olhou na direcção da janela e abstraiu-se do condutor que tentava, avidamente, fazer conversa. Não acenou, não anuiu, não olhou para ele sequer. Certamente o homem o achou arrogante de primeira, mas não lhe interessava que juízo os outros faziam dele, tinha mais com que se preocupar. Lembrou-se, de repente, daquilo que a mente havia esquecido naquela manhã: O sonho…

“Maldita casa!!” murmurou. O taxista, agora calado, ignorou-o.