quinta-feira, 25 de julho de 2013

Capítulo II - A chamada

Acordou, em sobressalto, do que lhe pareceu um sono breve, confirmado pelo persistente e incessante ronco do homem com o qual partilhava a parede do quarto. O telemóvel tocava repetidamente. Tentou ignorá-lo, durante a eternidade de tempo que permaneceu no escuro, tendo apenas por companhia os barulhos do vizinho, uma companhia solitária e desagradável portanto. Mas, o toque, propositadamente irritante, definido para se obrigar a si próprio a atender chamadas invés de as rejeitar em toda a sua natureza anti-social, tornou-se insuportável demais.

"É bom que isto seja urgente!! Duendes e potes de ouro no fim de arco-íris esperam-me..." A ironia foi respondida com o mais frio dos silêncios. "Estou sim...?" Insistiu. Por fim, uma voz rouca, baixa e tremida fez-se ouvir. Reconheceu-a imediatamente.

"Desculpa... Des…" As palavras eram interrompidas por lágrima irrepressíveis.

Sentiu o mundo fechar sobre si mesmo, engoli-lo de uma forma tão completa que sentia todo o corpo comprimir-se devido a uma força oculta. Esmagava-o, afogava-o de uma maneira tal que não sentia o calor da superfície - a escuridão era total. Não conseguia respirar, não tinha ar e, entre convulsões incontroláveis, desabotoou a camisa que o sufocava. O temor tomou conta de si, petrificou-o, não conseguia obrigar-se sequer a desligar o telemóvel. 

“Filho… Desculpa!” A voz do pai parecia-lhe fraca. “Ela veio ter comigo! A culpa é dela!!! Mas, não penses que te podes esconder de mim!” Aos poucos, o tom ameaçador que tanto o caracterizava, tomava conta do pai. “Vou-te sempre encontrar! Sempre!!!”

Os olhos, involuntariamente, fecharam-se, todos os ruídos cessaram, deixou até de sentir a roupa na pele. Isolou-se no vazio, consumido pelo terror.

“Lucas…?” Voltou à realidade. A voz era diferente, não a do seu pai. 

“Maurício?” Uma enorme confusão fez-se evidente na sua mente. A voz que ainda há pouco dava vida a todos os seus maiores medos, revelava-se nada mais que uma ilusão, por muito realista que fosse. Tentou acalmar o coração, que pulsava incontrolavelmente, e respirou fundo.

“Estás bem?” Maurício parecia preocupado. Apesar de estar mais calmo, Lucas, não conseguia deixar de ofegar, o que, certamente, foi percebido pelo astuto advogado.

“Sim, não te preocupes comigo.” Olhou para o despertador na mesa-de-cabeceira, passavam poucos minutos das nove horas da manhã. Recorreu ao vício para o acalmar, apesar de nunca ter apreciado fumar logo pela manhã. “Agora,” Deu uma passa no cigarro e libertou o fumo violentamente “diz-me que tens boas notícias!”

quarta-feira, 3 de julho de 2013

Capítulo II - Os papeis

Tentou controlar um impulso persistente de desligar o telemóvel enquanto ouvia os gritos incessantes do outro lado da linha.

“Prima, ouça-me!” Sempre tratou a prima por você, um hábito antiquado adquirido ainda em criança por imposição do pai. O castigo por não o fazer seria demasiado terrível.

“Não vou ouvir coisa nenhuma Lucas! Não admito que te recuses a lá voltar, nem mesmo por uma única noite!” Os berros persistiam e a dor de cabeça, resultante das bebidas a mais da noite anterior, agravava-se.

“Pois admita! Não tenho qualquer intenção de voltar aquela casa!!” Retorquiu.

“Valha-me a Santa, rapaz! Que raio tens tu contra aquele sítio?!” A verdade é que nem ele sabia ao certo. Aquela casa dava-lhe a sensação de morte iminente, a sensação que nada de bom aconteceria enquanto permanecesse nela! Talvez o que aconteceu com o seu pai tenha contribuído para a sensação de desconforto total apenas ao pensar em ter de ir lá passar uma noite. A ausência de resposta à pergunta levou a um silêncio que prevaleceu uns segundos longos. A prima, que havia retomado a gritaria de ainda à pouco, foi interrompida.

“Eu vou pedir ao meu advogado para rever os papéis.”

“Por muitas revisões que ele lhes faça não vai mudar nada. Os papeis são claro!”

“Eu trato do assunto, não se massacre mais! Tenha um bom dia prima.” E desligou o telemóvel, sucumbindo, finalmente, ao impulso latente e antes que ela pudesse ripostar a sua decisão.

“Chegamos ao Plaza, senhor” Informou-lhe o taxista com um certo desdém. Pagou-lhe e saiu do carro. A carteira adquiriu uma estranha leveza, o taxista tinha-lhe cobrado dinheiro a mais.

Abriu a porta do quarto e, logo, reparou que a quantidade de mensagens e recados que o esperavam, pacientemente, na cómoda era nada mais que ridícula. Inspirou profundamente esperando que o ar lhe mudasse o espírito. Pegou nas mensagens e leu-as frivolamente, não havia assuntos importantes ou urgentes, por isso tudo o resto esperaria. Refastelou-se no sofá e decidiu-se a ligar ao advogado.

Marcou o número no telemóvel lentamente, como se os dedos lhe pesassem ou as teclas se tivessem tornado demasiado pequenas para as manusear com precisão. Por fim, levou o telemóvel ao ouvido e esperou. Tocou… Tocou… Tocou…

“Maurício, liga-me quando receberes esta mensagem. Vou mandar-te a cópia de uns papeis por fax, precisos que os vejas. Encontra-lhes alguma falha!”.

A prima, mais velha uns anos e com quem a relação era pouca, tinha-lhe enviado o testamento do velho, do seu pai. Segundo tal documento a casa era sua…

O silêncio, que pensava obter ao evitar continuar no telemóvel com a prima histérica, revelou-se falso, conseguia ouvir, claramente, o ressonar do vizinho do lado através da parede do quarto. Não conseguiu impedir que uma raiva nascesse violentamente no seu âmago. Para que raio andava a pagar quantias absurdas por um quarto de hotel, se nem podia ter o sossego por que tanto ansiava?!

“Merda para isto!!!!!”

Tentou, em vão, acordar o vizinho, ou fazê-lo parar com aquele barulho estridente, ao bater repetidamente na parede que os separava. Sabia que não era a ausência de paz que lhe fomentava a cólera, mas com grado os direccionava para o vizinho, que continuava a ressonar que nem um belo de um porco, na gerência do hotel, nos construtores, em tudo! Desistiu, por fim, quando as mãos lhe estavam já vermelhas, de modo a nem as sentir.

Encostou-se à parede do quarto e acabou por adormecer embalado pelas vibrações da parede em ressonância ao roncar incansável do homem hospedado no quarto a seguir ao seu.

segunda-feira, 1 de julho de 2013

Capítulo I - A mulher

A verdade é que, por muito que proibisse a entrada de Eve no seu pensamento, ela acabava sempre por quebrar a regra. Ela quebrava todas as regras. Como era possível ainda exercer um tão forte efeito sobre ele?

Tirou um cigarro do bolso direito do casaco e, mal saiu do prédio acendeu-o, tentado apagar o sabor que o nome dela lhe tinha provocado. Parou, brevemente, na entrada do prédio enquanto levava o cigarro à boca, infundindo o fumo até que lhe dissolvesse os pensamentos.

“Ainda te quero demais…” E deixou-se pensar nela. Mergulhou nas funduras daquela mulher impetuosa que o fez perder tantas vezes a razão, o amor por si próprio e toda a lógica. Deixou-se pensar em percorrer-lhe o corpo, como havia feito há tanto tempo por tantas vezes; em sentir o olhar, tão profundo que lhe lia a alma, pairar sobre si; em ouvir-lhe o riso alto e possante. Eve, era uma mulher como tantas outras, não era uma beleza estonteante com olhos azuis, cabelo loiro e pernas longas! Não, era baixa e algo curvosa. Mas, não havia quem lhe igualasse olhar… Como o cativava! Fazia-o perder a cabeça e todos os princípios que pensava ter. Ansiava por ela… Por ouvir a sua voz, por sentir o seu toque, por ama-la e tê-la de novo nos seus braços!

Expirou prolongadamente o fumo e levou o cigarro à boca mais uma vez. Não fumava até a conhecer, foi como que seduzido a começar por ela. Adorava vê-la fumar, dava-lhe um ar de quem era dona de si. Chegava a ficar horas a vê-la consumir cigarro após cigarro.

Nunca pensou que ela o pudesse trair, muito menos de uma forma tão profunda, preferia até que ela fizesse sexo outro homem! Porque tinha ela falado com o seu pai? Porque tinha ela a necessidade de resolver assuntos para além da sua compreensão? Porquê?

Jamais amaria alguém da maneira que a tinha amado, mas não possuía qualquer desejo de deixar tal acontecer. Amou-a, amava-a ainda, talvez sempre a fosse amar, mas nunca estaria com ela.
Deixou o fumo do cigarro escapar-lhe dos pulmões violenta e sucintamente, e com ele proibiu de novo a presença dela na sua mente. Fez sinal a um táxi que se aproximava do fundo da rua e entrou.

“Para o Plaza.”

“Sim senhor.”

Olhou na direcção da janela e abstraiu-se do condutor que tentava, avidamente, fazer conversa. Não acenou, não anuiu, não olhou para ele sequer. Certamente o homem o achou arrogante de primeira, mas não lhe interessava que juízo os outros faziam dele, tinha mais com que se preocupar. Lembrou-se, de repente, daquilo que a mente havia esquecido naquela manhã: O sonho…

“Maldita casa!!” murmurou. O taxista, agora calado, ignorou-o.