quarta-feira, 3 de julho de 2013

Capítulo II - Os papeis

Tentou controlar um impulso persistente de desligar o telemóvel enquanto ouvia os gritos incessantes do outro lado da linha.

“Prima, ouça-me!” Sempre tratou a prima por você, um hábito antiquado adquirido ainda em criança por imposição do pai. O castigo por não o fazer seria demasiado terrível.

“Não vou ouvir coisa nenhuma Lucas! Não admito que te recuses a lá voltar, nem mesmo por uma única noite!” Os berros persistiam e a dor de cabeça, resultante das bebidas a mais da noite anterior, agravava-se.

“Pois admita! Não tenho qualquer intenção de voltar aquela casa!!” Retorquiu.

“Valha-me a Santa, rapaz! Que raio tens tu contra aquele sítio?!” A verdade é que nem ele sabia ao certo. Aquela casa dava-lhe a sensação de morte iminente, a sensação que nada de bom aconteceria enquanto permanecesse nela! Talvez o que aconteceu com o seu pai tenha contribuído para a sensação de desconforto total apenas ao pensar em ter de ir lá passar uma noite. A ausência de resposta à pergunta levou a um silêncio que prevaleceu uns segundos longos. A prima, que havia retomado a gritaria de ainda à pouco, foi interrompida.

“Eu vou pedir ao meu advogado para rever os papéis.”

“Por muitas revisões que ele lhes faça não vai mudar nada. Os papeis são claro!”

“Eu trato do assunto, não se massacre mais! Tenha um bom dia prima.” E desligou o telemóvel, sucumbindo, finalmente, ao impulso latente e antes que ela pudesse ripostar a sua decisão.

“Chegamos ao Plaza, senhor” Informou-lhe o taxista com um certo desdém. Pagou-lhe e saiu do carro. A carteira adquiriu uma estranha leveza, o taxista tinha-lhe cobrado dinheiro a mais.

Abriu a porta do quarto e, logo, reparou que a quantidade de mensagens e recados que o esperavam, pacientemente, na cómoda era nada mais que ridícula. Inspirou profundamente esperando que o ar lhe mudasse o espírito. Pegou nas mensagens e leu-as frivolamente, não havia assuntos importantes ou urgentes, por isso tudo o resto esperaria. Refastelou-se no sofá e decidiu-se a ligar ao advogado.

Marcou o número no telemóvel lentamente, como se os dedos lhe pesassem ou as teclas se tivessem tornado demasiado pequenas para as manusear com precisão. Por fim, levou o telemóvel ao ouvido e esperou. Tocou… Tocou… Tocou…

“Maurício, liga-me quando receberes esta mensagem. Vou mandar-te a cópia de uns papeis por fax, precisos que os vejas. Encontra-lhes alguma falha!”.

A prima, mais velha uns anos e com quem a relação era pouca, tinha-lhe enviado o testamento do velho, do seu pai. Segundo tal documento a casa era sua…

O silêncio, que pensava obter ao evitar continuar no telemóvel com a prima histérica, revelou-se falso, conseguia ouvir, claramente, o ressonar do vizinho do lado através da parede do quarto. Não conseguiu impedir que uma raiva nascesse violentamente no seu âmago. Para que raio andava a pagar quantias absurdas por um quarto de hotel, se nem podia ter o sossego por que tanto ansiava?!

“Merda para isto!!!!!”

Tentou, em vão, acordar o vizinho, ou fazê-lo parar com aquele barulho estridente, ao bater repetidamente na parede que os separava. Sabia que não era a ausência de paz que lhe fomentava a cólera, mas com grado os direccionava para o vizinho, que continuava a ressonar que nem um belo de um porco, na gerência do hotel, nos construtores, em tudo! Desistiu, por fim, quando as mãos lhe estavam já vermelhas, de modo a nem as sentir.

Encostou-se à parede do quarto e acabou por adormecer embalado pelas vibrações da parede em ressonância ao roncar incansável do homem hospedado no quarto a seguir ao seu.

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