sábado, 21 de setembro de 2013

Capítulo II - A Tentação

Estendeu-se na cama com o cigarro por entre os lábios, colocou o braço por trás da cabeça e, de soslaio, esgueirou o testamento do pai. Estava até tentado a lê-lo, depois da conversa com Maurício. O envelope, escondido por entre revistas e recados sem importância, palpitava, roubava-lhe a atenção. Inalou o fumo e sentiu o tabaco agravar o desejo de ler a carta que lhe era dirigida.

Virou-se, subitamente, de costas para o envelope, como se o facto de não o ver lhe diminui-se de alguma maneira a vontade de ler a carta, o que resultou no completo oposto. Sentia o velho libertar-se por entre páginas e folhas e dominar a sala. O cheiro do pai invadiu-lhe a memória, parecia até senti-lo pairar pelos cantos do quarto, aquele cheiro que a chuva deixa depois de cair na terra levemente. Sentia-o em todo o lado, a presença era como que omnipotente e despia-o de qualquer réstia de controlo!


Avidamente, percorreu o pequeno espaço que o separava do objecto de desejo. Parou, inesperadamente, quando o corpo lhe começou a fraquejar, invadindo-o calafrios e espasmos, a reacção natural em tudo relacionado com o pai, rejeitava-o completamente. Era compreensível que, uma pequena parte de si, tinha receio do que iria encontrar por entre as palavras do velho, mas como quase sempre, a curiosidade sobrepôs o medo, levando-o a arrancar desajeitada e exasperadamente do envelope a carta, e consumir, sofregamente, as palavras que o encaravam.

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Capítulo II - A conversa

Muito para seu desagrado, o amigo advogado não albergava boas notícias. Informou-lhe de que pouco havia a fazer e que se ele queria, efectivamente, vender a propriedade o velho desejo do recente falecido acabaria por se realizar.

“Como assim?”

“No testamento, o teu pai” Lucas quase parou de respirar ao ouvi-lo, não gostava que o associassem ao velho, mesmo que este fosse seu pai “Exprimiu, mais que uma vez, um forte desejo que fosses à propriedade em questão” Informou-lhe Maurício.

“Ai sim?” Uma irritação aguda exprimiu-se num cerrar compulsivo dos dentes e pelo ritmo formado no soalho em resposta à inquietação das pernas. Estava farto, farto que a casa lhe invadisse os pensamentos todos os dias da sua vida e que, por uma razão que nem ele próprio compreendia, se tivesse escapulido para a realidade e o assombra-se, agora, ainda mais.

“Não te percebo Lucas… Mandas-me uns papeis e pedes-me para lhes encontrar algo de errado, quando tu mesmo ainda nem os leste!”

“Porque havia? Não tenho qualquer interesse em alguma coisa que aquele velho podre me deixe, seja uma merda de umas palavras pobremente dispostas em frases com desculpas ou ameaças, ou a porcaria da casa que sempre detestei! Não quero ter nada a ver com aquelas pessoas, casa, nada! Quero que me tires isto das mãos!”

“Pois…” Suspirou. Sentia compaixão por Lucas, sabia todos os seus maiores medos e todas as terríveis recordações de infância, mas estava de mãos atadas “Lamento querido amigo, mas é me impossível tratar da venda do imóvel sem os devidos documentos.”

“Propões que os tire da minha cartola mágica? Eu nem sei que documentos são esses!”

“Eu envio-te uma lista com tudo o que preciso para tratar do assunto, mas não te posso fazer o favor de lá ir.”

“Nem to pedia.” Resignou-se ao seu destino e abandonou o assunto. Fez um pouco de conversa de conveniência, perguntou ao advogado sobre a família, a vida, o trabalho, ou o excesso deste, e desligou.

Apercebeu-se que tinha ainda na mão, embora apagado, um cigarro que, tal como a sua paciência, se tinha consumido por inteiro. Toda a burocracia da situação aborrecia-o. Pouco percebia do assunto no entanto, não possuía qualquer desejo de aprofundar o conhecimento em assuntos como venda de propriedades, ou análises das palavras de defuntos, não quando podia pagar alguém para o fazer. Dinheiro não lhe era, propriamente, escasso. Livrou-se da réstia que tinha na mão e iniciou a arte num outro cigarro. Ponderou se poderia pagar a alguém para ir procurar aquilo que precisava para se livrar da casa, ponderou se alguém se atreveria a ir àquela casa sequer. Sim, sentia-se ligeiramente cobarde ao evitar com todas as suas forças e posses monetárias ter que passar uns dias naquele edifício, mas o medo ultrapassava-lhe qualquer outro sentimento, e era o único que lhe afectava todo o corpo e lhe ocupava toda a mente.

quinta-feira, 25 de julho de 2013

Capítulo II - A chamada

Acordou, em sobressalto, do que lhe pareceu um sono breve, confirmado pelo persistente e incessante ronco do homem com o qual partilhava a parede do quarto. O telemóvel tocava repetidamente. Tentou ignorá-lo, durante a eternidade de tempo que permaneceu no escuro, tendo apenas por companhia os barulhos do vizinho, uma companhia solitária e desagradável portanto. Mas, o toque, propositadamente irritante, definido para se obrigar a si próprio a atender chamadas invés de as rejeitar em toda a sua natureza anti-social, tornou-se insuportável demais.

"É bom que isto seja urgente!! Duendes e potes de ouro no fim de arco-íris esperam-me..." A ironia foi respondida com o mais frio dos silêncios. "Estou sim...?" Insistiu. Por fim, uma voz rouca, baixa e tremida fez-se ouvir. Reconheceu-a imediatamente.

"Desculpa... Des…" As palavras eram interrompidas por lágrima irrepressíveis.

Sentiu o mundo fechar sobre si mesmo, engoli-lo de uma forma tão completa que sentia todo o corpo comprimir-se devido a uma força oculta. Esmagava-o, afogava-o de uma maneira tal que não sentia o calor da superfície - a escuridão era total. Não conseguia respirar, não tinha ar e, entre convulsões incontroláveis, desabotoou a camisa que o sufocava. O temor tomou conta de si, petrificou-o, não conseguia obrigar-se sequer a desligar o telemóvel. 

“Filho… Desculpa!” A voz do pai parecia-lhe fraca. “Ela veio ter comigo! A culpa é dela!!! Mas, não penses que te podes esconder de mim!” Aos poucos, o tom ameaçador que tanto o caracterizava, tomava conta do pai. “Vou-te sempre encontrar! Sempre!!!”

Os olhos, involuntariamente, fecharam-se, todos os ruídos cessaram, deixou até de sentir a roupa na pele. Isolou-se no vazio, consumido pelo terror.

“Lucas…?” Voltou à realidade. A voz era diferente, não a do seu pai. 

“Maurício?” Uma enorme confusão fez-se evidente na sua mente. A voz que ainda há pouco dava vida a todos os seus maiores medos, revelava-se nada mais que uma ilusão, por muito realista que fosse. Tentou acalmar o coração, que pulsava incontrolavelmente, e respirou fundo.

“Estás bem?” Maurício parecia preocupado. Apesar de estar mais calmo, Lucas, não conseguia deixar de ofegar, o que, certamente, foi percebido pelo astuto advogado.

“Sim, não te preocupes comigo.” Olhou para o despertador na mesa-de-cabeceira, passavam poucos minutos das nove horas da manhã. Recorreu ao vício para o acalmar, apesar de nunca ter apreciado fumar logo pela manhã. “Agora,” Deu uma passa no cigarro e libertou o fumo violentamente “diz-me que tens boas notícias!”

quarta-feira, 3 de julho de 2013

Capítulo II - Os papeis

Tentou controlar um impulso persistente de desligar o telemóvel enquanto ouvia os gritos incessantes do outro lado da linha.

“Prima, ouça-me!” Sempre tratou a prima por você, um hábito antiquado adquirido ainda em criança por imposição do pai. O castigo por não o fazer seria demasiado terrível.

“Não vou ouvir coisa nenhuma Lucas! Não admito que te recuses a lá voltar, nem mesmo por uma única noite!” Os berros persistiam e a dor de cabeça, resultante das bebidas a mais da noite anterior, agravava-se.

“Pois admita! Não tenho qualquer intenção de voltar aquela casa!!” Retorquiu.

“Valha-me a Santa, rapaz! Que raio tens tu contra aquele sítio?!” A verdade é que nem ele sabia ao certo. Aquela casa dava-lhe a sensação de morte iminente, a sensação que nada de bom aconteceria enquanto permanecesse nela! Talvez o que aconteceu com o seu pai tenha contribuído para a sensação de desconforto total apenas ao pensar em ter de ir lá passar uma noite. A ausência de resposta à pergunta levou a um silêncio que prevaleceu uns segundos longos. A prima, que havia retomado a gritaria de ainda à pouco, foi interrompida.

“Eu vou pedir ao meu advogado para rever os papéis.”

“Por muitas revisões que ele lhes faça não vai mudar nada. Os papeis são claro!”

“Eu trato do assunto, não se massacre mais! Tenha um bom dia prima.” E desligou o telemóvel, sucumbindo, finalmente, ao impulso latente e antes que ela pudesse ripostar a sua decisão.

“Chegamos ao Plaza, senhor” Informou-lhe o taxista com um certo desdém. Pagou-lhe e saiu do carro. A carteira adquiriu uma estranha leveza, o taxista tinha-lhe cobrado dinheiro a mais.

Abriu a porta do quarto e, logo, reparou que a quantidade de mensagens e recados que o esperavam, pacientemente, na cómoda era nada mais que ridícula. Inspirou profundamente esperando que o ar lhe mudasse o espírito. Pegou nas mensagens e leu-as frivolamente, não havia assuntos importantes ou urgentes, por isso tudo o resto esperaria. Refastelou-se no sofá e decidiu-se a ligar ao advogado.

Marcou o número no telemóvel lentamente, como se os dedos lhe pesassem ou as teclas se tivessem tornado demasiado pequenas para as manusear com precisão. Por fim, levou o telemóvel ao ouvido e esperou. Tocou… Tocou… Tocou…

“Maurício, liga-me quando receberes esta mensagem. Vou mandar-te a cópia de uns papeis por fax, precisos que os vejas. Encontra-lhes alguma falha!”.

A prima, mais velha uns anos e com quem a relação era pouca, tinha-lhe enviado o testamento do velho, do seu pai. Segundo tal documento a casa era sua…

O silêncio, que pensava obter ao evitar continuar no telemóvel com a prima histérica, revelou-se falso, conseguia ouvir, claramente, o ressonar do vizinho do lado através da parede do quarto. Não conseguiu impedir que uma raiva nascesse violentamente no seu âmago. Para que raio andava a pagar quantias absurdas por um quarto de hotel, se nem podia ter o sossego por que tanto ansiava?!

“Merda para isto!!!!!”

Tentou, em vão, acordar o vizinho, ou fazê-lo parar com aquele barulho estridente, ao bater repetidamente na parede que os separava. Sabia que não era a ausência de paz que lhe fomentava a cólera, mas com grado os direccionava para o vizinho, que continuava a ressonar que nem um belo de um porco, na gerência do hotel, nos construtores, em tudo! Desistiu, por fim, quando as mãos lhe estavam já vermelhas, de modo a nem as sentir.

Encostou-se à parede do quarto e acabou por adormecer embalado pelas vibrações da parede em ressonância ao roncar incansável do homem hospedado no quarto a seguir ao seu.

segunda-feira, 1 de julho de 2013

Capítulo I - A mulher

A verdade é que, por muito que proibisse a entrada de Eve no seu pensamento, ela acabava sempre por quebrar a regra. Ela quebrava todas as regras. Como era possível ainda exercer um tão forte efeito sobre ele?

Tirou um cigarro do bolso direito do casaco e, mal saiu do prédio acendeu-o, tentado apagar o sabor que o nome dela lhe tinha provocado. Parou, brevemente, na entrada do prédio enquanto levava o cigarro à boca, infundindo o fumo até que lhe dissolvesse os pensamentos.

“Ainda te quero demais…” E deixou-se pensar nela. Mergulhou nas funduras daquela mulher impetuosa que o fez perder tantas vezes a razão, o amor por si próprio e toda a lógica. Deixou-se pensar em percorrer-lhe o corpo, como havia feito há tanto tempo por tantas vezes; em sentir o olhar, tão profundo que lhe lia a alma, pairar sobre si; em ouvir-lhe o riso alto e possante. Eve, era uma mulher como tantas outras, não era uma beleza estonteante com olhos azuis, cabelo loiro e pernas longas! Não, era baixa e algo curvosa. Mas, não havia quem lhe igualasse olhar… Como o cativava! Fazia-o perder a cabeça e todos os princípios que pensava ter. Ansiava por ela… Por ouvir a sua voz, por sentir o seu toque, por ama-la e tê-la de novo nos seus braços!

Expirou prolongadamente o fumo e levou o cigarro à boca mais uma vez. Não fumava até a conhecer, foi como que seduzido a começar por ela. Adorava vê-la fumar, dava-lhe um ar de quem era dona de si. Chegava a ficar horas a vê-la consumir cigarro após cigarro.

Nunca pensou que ela o pudesse trair, muito menos de uma forma tão profunda, preferia até que ela fizesse sexo outro homem! Porque tinha ela falado com o seu pai? Porque tinha ela a necessidade de resolver assuntos para além da sua compreensão? Porquê?

Jamais amaria alguém da maneira que a tinha amado, mas não possuía qualquer desejo de deixar tal acontecer. Amou-a, amava-a ainda, talvez sempre a fosse amar, mas nunca estaria com ela.
Deixou o fumo do cigarro escapar-lhe dos pulmões violenta e sucintamente, e com ele proibiu de novo a presença dela na sua mente. Fez sinal a um táxi que se aproximava do fundo da rua e entrou.

“Para o Plaza.”

“Sim senhor.”

Olhou na direcção da janela e abstraiu-se do condutor que tentava, avidamente, fazer conversa. Não acenou, não anuiu, não olhou para ele sequer. Certamente o homem o achou arrogante de primeira, mas não lhe interessava que juízo os outros faziam dele, tinha mais com que se preocupar. Lembrou-se, de repente, daquilo que a mente havia esquecido naquela manhã: O sonho…

“Maldita casa!!” murmurou. O taxista, agora calado, ignorou-o.

quinta-feira, 27 de junho de 2013

Capítulo I - O sonho

Imóvel, o ar fugia-lhe dos pulmões de forma brusca. Não conseguia impedir o nervoso miúdo, desde que entrara naquele edifício infernal, de crescer exponencial e incontroladamente. Os músculos já não lhe obedeciam de tal modo que, tremores sucessivos e suores frios lhe percorriam todo o corpo. “O… Relógio… O relógio.” Eram as únicas palavras que conseguia expulsar por entre os dentes cerrados.

Não havia relógio ao fundo do corredor, aliás, não havia paredes em volta do corredor, apenas restavam gastos mosaicos de madeira que cobriam o chão, e portas que chiavam com a brisa fria que vagueava. Vegetações revestiam a velha casa, ou a réstia do que tinha ficado dela. Mas, o barulho ensurdecedor do cuco não parava, apenas aumentava, até não conseguir deter um grito de horror que se soltou da garganta. 

Acordou. O coração palpitava de tal forma que estava certo que queria escapar-lhe do peito e, tão rápido como o desespero o tinha invadido há momentos atrás, igualmente lhe desocupou da mente qualquer vestígio do que havia ou não sonhado. 

Por instantes não se recordava onde estava, como tinha lá parado e com quem, contudo, rápido, um perfume de jasmins tão forte que lhe dava dores de cabeça invadiu os seus sentidos. Inconscientemente, esticou o braço para além da sua almofada e sentiu-lhe o calor. Não sabia com quem tinha passado a noite, pouco lhe importava, não era homem de se apegar a uma só mulher, não iria cometer esse erro novamente. Nunca seria tão cego como fora com Eve! Mas, não queria pensar nela, só o facto de deixar a mente divagar o seu nome trazia-lhe um gosto amargo à boca. 

Levantou-se, vestiu-se e fechou a porta ao sair do apartamento. Não se despediu. Entrou no elevador e encostou-se de forma despreocupada, voltou a pensar em Eve. 
“Foda-se!” E logo um gosto amargoso se apoderou da sua boca. 

quarta-feira, 26 de junho de 2013

Capítulo I - A casa

Era o mesmo tic tac de que se lembrava, o mesmo compasso incessante, ao qual não conseguia ser indiferente, a mesma dança entre os ponteiros do velho relógio de cuco. Dançava, também ele, entre os lençóis tentando sem sucesso interromper o barulho enervante que ecoava pela casa. Deteve-se durante maior parte da noite, mas rompeu do invólucro de tecido em que se tinha envolvido, de certa forma violenta, assim que viu pequenos laivos de raios de sol escaparem-se por entre as persianas e cortinas… “Maldito relógio!” Arrastou-se até ao fundo do corredor com largos e pesados passos, fazendo ranger o soalho caducado do segundo andar, em direcção ao amaldiçoado objecto que tanta fúria lhe causava, com nada mais do que o claro intuito de mandar tal coisa pela janela fora.

Detestava aquela casa, sempre a havia detestado. Sim, é algo confuso não sentir a nostalgia clássica e  um carinho pela casa em que se cresceu como, vezes por demais, o diziam os seus companheiros das noites de jogo. Odiava-os por o fazerem sentir diferente, ou melhor, anómalo. Para ele a casa onde, agora tentava dormir, era nada mais que uma estrutura sustentada por pilares e tijolos, não sentia amor por aquela casa, muito pelo contrário, sentia uma profunda aversão que, a seu ver, não tinha razão particular.

À medida que se ia aproximando o ruído dilatava, os seus ouvidos não aguentavam mais, ele não aguentava mais, queria dormir, descansar, para tratar do que tinha de ser tratado e nunca mais ter de voltar àquela casa. Quando se encontrava perante o diabo do relógio, parou subitamente, como se não soubesse para que efeito se tinha levantado da cama. Os olhos, cansados, pareciam estar-lhe a mentir…